Sim, precisamos admitir. A gente não compra a planta, a gente a sequestra pra morrer no conforto de casa. E quando a gente a ganha de presente, é quase formação de quadrilha. Pois bem. Eu moro de favor. Divido as contas, o condomínio, a diarista, mas me isento do aluguel. Fato que habito nesse espaço cinza entre ter ou não ter e a dona da casa não viu com bons olhos quando o mato entrou. A samambaia, a jibóia, o pinheirinho, a pacova, a figueira-lira; não que ela não se encantasse com o verde vida que atrai passarinhos à sacada do quinto andar. Mas me olhava com cara de ‘eu sei o que você fez no verão passado’. – Olha, eu gosto de você, não me entenda mal… Sim, eu preciso admitir. Talvez seja demais convidar alguém a ser cúmplice em crime de primeiro grau.
Conforme as plantas cresciam e se abriam a dona da casa fechava sua cara. Eu mudava as plantas de lugar, testava onde melhor cada uma se desenvolvia. Porém, sempre que uma planta saía de um canto e uma vaga se abria, ia correndo ao supermercado Extra comprar mais plantas com meu vale-refeição.
Conforme o quadro verde do pequeno apartamento se expandia, a dona murchava. Eu me preocupava. Regava, buscava terra boa, húmus e coisa e tal. O sol do sertão é foda para algumas plantas domésticas e a secura é prova de fogo. Tal que já não conseguia mais abster da autoria de um crime. Eu já nem usava mais pulseiras para das espaço às algemas.
Conforme as plantas secavam a dona do apê florescia. Estava garbosa e rígida e não escondia seu sorriso. ‘São suas filhas”. Eu, pai de planta. E saía rindo, até voltara a beber café comedidamente e parou de fumar. Conforme o quadro amarelo amarronzava o ambiente e o sorriso da dona me impelia a pensamentos – esses sim, de fato – criminosos, emulei amor. Tocava viola para as bichinhas, comprei borrifador pra alentar a secura. Algumas preferiram instrumentais, outras músicas do velho cancioneiro caipira. Mas o que todas elas adoravam era o borrifador. O verde foi se restaurando pouco a pouco e se um dia fui indiligente com as folhadas, era passado.
Enquanto o verde revigorava a velha se encardia, era um tal de pagamento atrasado aqui, louça suja acolá, e eu me vingava: as plantas davam filhos e eu comprava insumos e vasos para as mudinhas. Quando eu vi, faziam meses que eu não saia de casa, ou melhor, da minha pequena selva particular. Eu já não usava roupas, apenas um cinto que trazia o borrifador a tira-colo.
A dona do apartamento não tive notícias. Uma planta me contou que ela murchou no seu quarto até virar poeira e eu mesmo não consigo entrar, pois a jibóia se alastrou de tal forma que me impede de saber onde um dia foi a porta do seu quarto. Pensando agora, acho que a velha virou adubo, não duvido nada.
As vezes eu sinto falta do sol, confesso. Mas eu vivo para minhas filhinhas. Sinto saudade das ruas também, mas ao menos estou cada dia mais bem informado. Sabe essa coisa de internet dos fungos que a gente houve por aí, é a mais pura verdade. Tô mentindo não, as raizes dessas plantas se avolumaram de tal forma que já condenaram a estrutura do prédio. Sim, a samambaia me contou que ouviu da figueira que até o habite-se foi revogado. Faz sentido, pois há tempos que já nem as rego, a água é coletada direto das manilhas de abastecimento da cidade pela intrusa raizama.
Olha não me arrependo. Pode ser síndrome de Estocolmo, mas tô com elas e não abro. Sei que andam planejando me servir de adubo às mudinhas mais novas e que pra manterem seu plano de dominação é preciso lidar com as contingências. Elas nunca me censuraram e sei que elas vão me matar me amando. O mundo da voltas, queridinho, voltas de jibóia nos braços e pernas e enquanto elas me sugam até o tutano, ainda sinto o prazer de não precisar mais conviver com a velha, de que fui um pai exemplar, e que viver é sacrifício e que foi assim que eu herdei um apartamento.